15 abril, 2017

Homilia na Vigília Pascal



Solidários de raiz, só assim garantidos

Caríssimos irmãos em santa vigília: Com tudo o que ouvimos, oiçamos ainda e melhor porventura um pequeno trecho do Evangelho de há pouco: «Jesus saiu ao seu encontro [de Maria Madalena e da outra Maria] e saudou-as. Elas aproximaram-se, abraçaram-lhe os pés e prostraram-se diante d’Ele. Disse-lhes Jesus: “Não temais. Ide avisar os meus irmãos que partam para a Galileia. Lá me vereis”.»
Fixemo-nos na sequência: Jesus sai ao seu encontro e saúda-as. Elas aproximam-se e prostram-se. Jesus envia-as a enviar os apóstolos, que, já de si significam “enviados”. Aproximação, adoração e missão: assim a Páscoa de Jesus para nós, assim por nós para o mundo, como aquela “Galileia” também pode significar.
Aproximação mútua e por iniciativa d’Ele, na aproximação total que a ressurreição permitia. Jesus sai ao nosso encontro e saúda-nos, como o fez àquelas santas mulheres. Procuravam-no morto e apareceu-lhes vivo. Mais vivo do que nunca, pois viver é conviver e, desde então, a convivência de Jesus possibilita-se em qualquer tempo e espaço. Como entre nós agora, nesta catedral transfigurada.
Jesus realmente sai. Como saiu do Pai e veio ao mundo. Como saiu de Nazaré até às margens do lago para se encontrar com toda a gente. Como saiu da Galileia para a Judeia e a Jerusalém final, onde O acompanhámos nestes santíssimos dias. Como saiu deste mundo para o Pai, naquela “hora” de partir, tornada hora completíssima de chegar, para estar aqui connosco.Jesus sai, Jesus saúda e dá-nos a sua paz. A paz da morte vencida, a paz do amor triunfante e da perfeita presença e companhia.
Elas perceberam e adoraram-no, como apenas se faz a Deus. Antecipando já o nosso Credo: «Deus de Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro.» Repitamo-lo com elas, diante de Jesus ressuscitado. Deixemo-nos envolver por esta presença, mais luminosa que todos os círios da terra, pois a luz é divina e rebrilha sem fim. Ilumina as nossas vidas até aos recônditos mais obscuros, aí mesmo onde o pecado resistisse, a dor fosse mais aguda e a própria esperança mais sufocada. Precisamente aí nos encontrou Jesus, Deus humanado, para nos ressuscitar como humanidade divinizada pelo seu amor tão comprovado.
Jesus saiu ao encontro delas e elas aproximaram-se dele. Que sai constantemente ao nosso encontro e particularmente agora, nesta noite santíssima, sabemo-lo decerto e só por isso aqui estamos. Aproximemo-nos também, como tem de ser. Tem e deve ser pela concentração da mente, pela devoção que estes ritos suscitam, como Ele absolutamente nos mereceu e merece. E já que de nós fez o seu bem, correspondamos com inteira rendição.
Amor rendido ao amor expande-se de imediato em missão. Porque é próprio do bem difundir-se, porque o autêntico amor não fica em si. Amor absoluto é Deus, que nos cria e recria. Amor comprovado é o de Cristo, que nos leva de regresso a casa do Pai. Amor autenticado será o nosso, se alargarmos na Galileia que nos caiba tudo o que recebemos de Deus e a ressurreição de Cristo garante e concede.
Pode parecer fácil dizer estas coisas em Lisboa, ou nas nossas catedrais pacificadas. Mas nesta mesma noite se dizem em tantos outros sítios que mais parecem a Jerusalém de então, com os discípulos escondidos e tantos medos difusos pela recente tragédia do Calvário... E, no entanto, assim acontece e porventura com mais certeza ainda do que aqui entre nós. Aí, onde a luz pascal de Cristo ilumina as densas trevas da perseguição aos cristãos, hoje os mais perseguidos de todos os crentes na globalidade do mundo.
Com eles estamos, na sua fé ressurgimos. Com eles adoramos o Senhor que sai ao nosso encontro, como eles sairemos a anunciá-lo vivo e vencedor da morte. Vencendo o mal com o bem, mudando as trevas em luz. Mesmo aqui onde estamos, porque a geografia é a da alma. Talvez daqui a pouco em casa, talvez amanhã na rua, no trabalho, na escola, no hospital, na prisão, seja onde for e se recorte uma Galileia a que chegar.

Também ouvimos São Paulo, como escrevia aos romanos: «Se, na verdade, estamos totalmente unidos a Cristo pela semelhança da sua morte, também o estaremos pela semelhança da sua ressurreição.»
A primeira geração já o sabia, de cristãos no mundo. Assim o havemos de saber, sempre mais, como nesta vigília tão batismal por excelência. Trata-se de cristianismo autêntico, trata-se de união a Cristo, no que esta tem de essencial, existencial, vital. União de consentimento e destino, vivendo para o que Cristo viveu e morrendo para o que Cristo morreu, assim mesmo fazendo da própria morte maior vida.
O maior dom pascal é o Espírito, como Amor circulante entre Cristo e o Pai, que agora transborda para vivermos divinamente, também nós. Nada retendo em cada um e assim mesmo morrendo, todos doados a todos e só assim vivendo plenamente.
Quando Paulo escreveu aquela frase aos cristãos de Roma, sabia do que falava porque falava do que já vivia. Quando lhes referia o Espírito batismal, sabia muito bem como o esvaziara do antigo Saulo, cioso de si e das suas pretensões, mesmo religiosas, para ser agora o Paulo para toda a gente, cioso apenas dos outros a que chegasse e com a única certeza da vida de Cristo e da vida em Cristo.
Perfeitamente adequado à Páscoa do seu Senhor, saíram-lhe ainda antes frases como estas, que devemos saber de cor, porque bem alojadas no íntimo do nosso coração, como era o dele: «Todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte. Fomos sepultados com Ele pelo batismo na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, para glória do Pai, também nós vivamos uma vida nova.»
Seja o dom desta vigília, caríssimos irmãos, seja este o dom para cada um dos que aqui estamos, como para a Igreja inteira. Percebamos de vez que os sacramentos, a partir do batismo, são vida em Cristo e participação no seu destino de morte e ressurreição perfeitas. Na força do mesmo Espírito, nas mãos do mesmo Pai. Percebamo-nos assim, inteiramente batismais. Para que, também por nós, o mundo se perceba igualmente, solidário de raiz e só assim garantido.

Sé de Lisboa, 15-16 de abril de 2017

+ Manuel, Cardeal-Patriarca

Patriarcado de Lisboa 

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