01 setembro, 2016

Carta aos diocesanos de Lisboa - 2016/2017


Carta aos diocesanos de Lisboa, no início do novo ano pastoral

Como há dois mil anos começou o Reino


1. Em Setembro, a vida retoma o seu curso geral, após o chamado “tempo de férias”. Das famílias às escolas, das empresas à sociedade, recuperam-se os ritmos habituais. Também assim nas nossas comunidades, da catequese à liturgia e à ação sociocaritativa. Desejo a todos as maiores felicidades, aos que continuam nos mesmos lugares e serviços e aos que assumem novos encargos, paroquiais e outros.
Tudo isto é um bem, na cadência certa da vida que prossegue. Mas, para quem está no mundo como tantos mais, convém perguntar o porquê da vida eclesial, do que ela significa realmente para os discípulos de Cristo. Não bastaria retomarmos o habitual, mesmo que positivo, como os dias que sucedem às noites, ou a roda das estações do ano.Sim, partilhamos com todos os seres humanos o modo comum de ser e conviver, como o Criador nos sustenta, com deveres e direitos a irmanar-nos e responsabilizar-nos. Mas havemos de o fazer como cristãos, isto é, participantes do Espírito de Cristo e alargando o seu Reino. Permiti-me insistir neste ponto identitário, que julgo particularmente oportuno.Estamos no ano 2016 da era de Cristo, vivendo o que com Ele começou e só com Ele pode progredir. E sempre à sua maneira, tão diferente de qualquer projeto temporal que se impusesse exteriormente ou estabelecesse à força. É natural e positivo que, como cidadãos entre cidadãos, integremos projetos de melhoramento social e procuremos modos de o conseguir sempre mais e melhor, dentro aliás dum legítimo pluralismo de perspetivas e opções. Mas é sobrenatural e necessário que, seguindo a atitude de Jesus Cristo, abramos sempre o ocasional ao definitivo, o princípio ao fim e o tempo à eternidade. Não nos alheamos da realidade, damos-lhe a sua verdadeira dimensão.
Neste sentido, pode dizer-se que o nosso programa essencial está feito há dois milénios. Para leigos, consagrados e clérigos, trata-se de, pela palavra e pelo testemunho, partilhar com cada pessoa e em cada momento a possibilidade propriamente “cristã” de viver. Quando nasce, cresce e morre, que seja com Cristo; quando goze de saúde, a perca ou a recupere, que seja com Cristo também; e o mesmo quando ria ou quando chore, quando trabalhe ou descanse, quando estude e descubra, quando reze e contemple.
Por isso acompanhamos os outros da conceção ao nascimento, do nascimento à maturidade, à velhice, às exéquias e ainda depois. Tal como Cristo o fez, nascendo, vivendo, morrendo e ressuscitando, para assim continuar, através do corpo eclesial que connosco forma, a acompanhar a vida dos outros, abrindo-a em cada etapa à própria vida de Deus.
Por isso é Pastor, para nos conduzir a pastagens que não secam nunca (cf Sl 23). Por isso há “pastoral” propriamente dita – essa mesma, essencial e constante, na cidade ou no campo, na escola, no hospital ou na prisão, seja onde for, seja para quem for. No ano pastoral que iniciamos, como quando tudo recomeçou há dois milénios, para dar sentido e pleno cumprimento a toda a vida e à vida de todos. Mais do que viver para um futuro possível, o cristão preenche cada momento com a certeza das coisas finais, como Cristo as alcançou e oferece.

2. Nos dias em que vivemos, de cultura tão rarefeita e dispersa, a nova evangelização significa redescobrir e partilhar o modo cristão de ser, como possibilidade concreta de vida em abundância. Significa iniciação cristã autêntica e vida em Cristo sempre, pessoal, familiar e comunitariamente levada. Como só pascalmente se alcança, pois «a felicidade está mais em dar do que em receber» (Act 20, 35).
É por isso que um novo ano pastoral – como este de 2016-2017 – só pode ter como plano e programa, no que toca ao essencial, alcançar uma catequese, uma liturgia e uma ação sociocaritativa sempre mais conformes com as palavras e atitudes com que Jesus há dois mil anos inaugurou o Reino. Reino que a ressurreição garantiu para sempre e a vida dos cristãos assinala e oferece. Um Reino assim só filialmente se alcança, pois a Deus pertence e por Deus se estende. Se progredirmos na aprendizagem do Pai Nosso, experimentaremos e faremos experimentar bem mais a realidade plena do Reino de Deus.
Será a melhor maneira de vivermos o tempo, a partir de Deus, com indispensável entrega e confiança. Como escreve um autor contemporâneo: «Falar do Reino significa falar de um coração novo, de relações pessoais diferentes, de estruturas humanas que correspondam à forma como Deus criou e sonha este mundo. A questão decisiva está em entrar no Reino e como participar pessoalmente num espaço de salvação, de felicidade e de agradecimento – que Deus, manifestando-se, põe ao alcance de todos por intermédio de Jesus. No fundo de tudo, existe uma decisão, um desejo, uma vontade, que não coloca condições». E continua, indicando o essencial do que devemos ser e pedir, diante de Deus e da vida: «Por este motivo, Jesus, perante a estranheza dos seus discípulos, refere-se às crianças como modelo: é preciso receber o Reino de Deus como o faz uma criança, ou seja, a partir da necessidade e da fragilidade de quem sabe que não pode fazer nada por si próprio (Mc 10, 15, Lc 18, 17)» (Armand Puig, Jesus. Uma biografia, Lisboa, Paulus, 2006, p.342).
Diante das dificuldades que certamente tocarão a cada um - família a família, comunidade a comunidade – coloquemo-nos filialmente diante de Deus, neste ano e sempre. Demos-Lhe oportunidade para construir também em nós e por nós o seu Reino, como só Ele sabe e pode. Passagens como a seguinte, das primeiras gerações cristãs, devem ser levadas muito a sério, antes, durante e depois de qualquer programação, para que não seja demasiadamente nossa: «Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo» (Tg 4, 15).

3. Partilho convosco estes sentimentos e convicções, no início dum ano pastoral marcado por acontecimentos relevantes, como o tricentenário da qualificação patriarcal de Lisboa e o centenário das aparições de Fátima. Acontecimentos que não nos devem distrair do que mencionei e é de sempre, mas devemos aproveitar para o fazer melhor e mais definitivamente.
O tricentenário da qualificação patriarcal de Lisboa (7 de novembro de 1716, pelo Papa Clemente XI) evoca o empenho que D. João V pusera em ilustrar a capela real e o zelo que demonstrava, como os seus antecessores, pela propagação da fé, como então se entendia. Trezentos anos depois, só pode lembrar-nos a nós, num contexto histórico e eclesiástico tão diferente, que toda a Igreja é uma realidade missionária, como a missão há de ser vivida agora, em termos de nova evangelização e reciprocamente ad gentes.
Temos várias ações programadas e já anunciadas (v. o Programa-calendário diocesano) da música erudita a um musical, da edição de biografias episcopais e de cartas pastorais dos patriarcas à renovada apresentação museológica da diocese. Será muito bom que tudo isto seja aproveitado pelas nossas comunidades, para ganharem ainda maior consciência do que foram, são e hão de ser, como Igreja de Cristo em Lisboa e em missão.
A celebração do centenário das aparições de Fátima, antes e depois de 13 de maio, reforçará em todo o ano pastoral a dimensão mariana essencial à Igreja. «Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, […] a fim de recebermos a adoção de filhos» (Gl 4, 4-5). Tendo acompanhado o seu Filho de Belém ao Calvário, Maria tem sido por sua vez enviada, da glória em que com Ele vive, para nos repetir, no longo curso da vida da Igreja, as mesmas palavras que disse em Caná: «Fazei o que Ele vos disser!» (Jo 2, 5). Como A ouviram os pastorinhos há um século, também o faremos nós agora, com redobrada devoção e conversão evangélica. Isso mesmo nos dirá decerto o Papa Francisco, cuja presença aguardamos de coração inteiro.

4. A caminhada sinodal que encetámos em 2014 envolveu milhares de diocesanos que estudaram os vários capítulos da exortação apostólica Evangelii Gaudium do Papa Francisco, procurando o melhor modo de, também aqui, concretizarmos o “sonho missionário de chegar a todos”.
Muito se rezou, pensou e agiu nesse sentido, de então para cá, e assim continuaremos a fazer. Com o que chegou à comissão preparatória do sínodo – e foi sendo publicado na Voz da Verdade e no “site” do Patriarcado – elaborou-se um Documento de trabalho, já divulgado também, que está a ser estudado pelos membros convocados segundo os cânones para a assembleia sinodal que, de 30 de novembro a 4 de dezembro, lhe dará a redação final.
Importa entender esses dias como um momento especial duma caminhada diocesana muito mais larga na participação e no tempo, que talvez constitua o principal do que aconteceu – e será inteiramente respeitado e projetado para o futuro, em termos de sinodalidade crescente, cada vez mais aplicada na vida das comunidades e da diocese no seu todo.
Do muito que o Documento de trabalho do sínodo nos oferece, sintetizo e destaco «sete critérios de discernimento e ação eclesiais» (DT, 24 ss) que poderão orientar desde já a vida das nossas comunidades, pois acolhem as indicações da Evangelii Gaudium e a reflexão partilhada pelos grupos sinodais: 1º) Critério do tempo, disponibilidade para acompanhar pessoas e situações. 2º) Critério da unidade, prevalecendo sobre tensões e conflitos. 3º) Critério da realidade, um saudável realismo aberto à esperança. 4º) Critério da totalidade, não esquecendo a globalidade da proposta evangélica. 5º) Critério da evangelização, (re)configurando nesse sentido todas as estruturas e rotinas. 6º) Critério da autenticidade, para que o essencial evangélico ressalte em tudo e sempre. 7º) Critério da qualidade e da beleza, como o Evangelho oferece e a evangelização não dispensa.
Missão, sinodalidade, família e misericórdia são palavras-chave dos nossos dois últimos programas diocesanos, como se podem reler nas respetivas apresentações. Em seu torno caminharemos, para nos retomarmos como Igreja em missão, alargando o Reino. E a alma de tudo o que fizermos será essa mesma misericórdia, que nos identifica com o próprio Deus na atenção prioritária aos mais pobres e frágeis. Para tal nos fortalece o presente Jubileu, cuja graça permanece e nos impele.

Convosco, irmão e amigo,

+ Manuel, Cardeal-Patriarca
Lisboa, 1 de setembro de 2016

Patriarcado de Lisboa

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